Tuesday, July 10, 2012



Anna Maria Maiolino e o banquete antropofágco brasileiro



Fotopoemação




Fala com uma voz sibilante e ainda tem dificuldade em construir os plurais em português e fica perdida no meio das línguas onde cresceu - nasceu em Itália, na Calábria, em 1942, filha de pai italiano e mãe equatoriana, e emigrou para a Venezuela em 1954 acabando por se fixar no Rio de Janeiro. Diz fazer poesia. Porque Anna Maria Maiolino, um dos grandes nomes da arte brasileira, está na permanente descoberta da pequena poesia das coisas. É uma mulher atenta, com os olhos muito abertos e sempre espantada com as coisas, os encontros com os outros e, claro, a arte. Assume-se artista brasileira, porque é aí que reconhece a sua herança e a sua comunidade. Maiolino fez parte do movimento de artistas brasileiros chamado Nova Objectividade Brasileira onde se encontravam as diferentes vanguardas, desde o neoconcretismo - com Hélio Oiticia, Lygia Pape, Lygia Clark, Ferreira Aguilar, Reinaldo Jardim, Amílcar Castro, entre outros - à arte concreta e à nova figuração, movimento que fundou com os seus colegas de escola no Rio de Janeiro, Antonio Dias, Roberto Magalhães e Rubens Gerchan (com quem a artista foi casada). Lutavam por uma arte brasileira que não fosse cópia ou prolongamento da arte europeia: queriam uma arte brasileira em que o corpo fosse um participante activo e reflectisse a totalidade da cultura brasileira desde os índios, à arquitectura, às suas dinâmicas sociais e políticas.

Anna Maria Maiolino passou por Lisboa depois de uma grande exposição retrospectiva do seu trabalho no Centro Galego de Arte Contemporânea e quando ainda era segredo que iria ter um núcleo importante de obras na Documenta em Kassel [grande exposição internacional que, de cinco em cinco anos, reúne na Alemanha nomes e movimentos artísticos contemporâneos de referência]. É em Kassel que ocupa uma casa no meio da floresta com as suas cerâmicas, vídeos e poesias. O seu reconhecimento internacional foi tardio, mas já teve exposições importantes no Drawing Center e no MoMA de Nova Iorque, no MAC de Miami, no Camden Arts Center em Londres, entre muitos outros museus. Em Lisboa, fez uma única exposição, na Galeria Graça Brandão, onde apresentou a instalação Arroz & Feijão, originalmente feita em 1974 numa galeria carioca e que, num momento conturbado e de profundas transformações no Brasil, serviu como plataforma de discussão dos problemas básicos da alimentação: uma mesa com cerca de quatro metros onde estão postos pratos e copos de água, nos pratos, grãos de arroz germinam e ao fundo num monitor passa um poema que diz: "Enquanto eu como / dois terços da humanidade quase não comem/ morrem/enquanto eu como."

O seu trabalho é, como diz entre gargalhadas e sábia ironia, múltiplo-modal e, sublinha, poético. E por isso roubou a um espanhol que não sabe o nome a expressão: multi-modal-poético para se designar a si mesma. Começou por fazer pinturas com cores fortes e muito figurativas, mas depois foi no desenho, na escultura e na "poemação", como diz, que encontrou a sua linguagem de eleição. Na sua obra encontram-se filmes, fotografias e instalações, mas são os pequenos gestos de moldar, desenhar e dizer que melhor a caracterizam. Tem no ovo, na boca e no processo digestivo as suas imagens preferidas que lhe servem para enfrentar o infinito que diz procurar para as coisas na vida e que encontra na inesgotável transformação da natureza, do corpo e da mente. É um trabalho generoso que tenta dar conta da multiplicidade dos processos orgânicos, conceptuais, poéticos e formais que a vida está sempre a produzir.

Que língua é que fala? É porque fala um português muito particular.

Falo muitas e falo todas mal. Sou uma torre de Babel. O meu português é do Brasil, mas o italiano está cá e o espanhol também. Cheguei aos 18 anos ao Brasil e o português já foi a minha terceira língua, sendo o italiano a minha língua materna. E, claro, há o inglês que ainda estou a aprender. A maneira como eu falo português mantém resquícios da minha história e da maneira como ela está estratificada na minha memória.

Ainda se sente uma imigrante no Brasil?

Eu sinto-me uma artista brasileira. Especialmente quando estou fora do Brasil. Todo o meu trabalho foi lá desenvolvido, a minha herança e a arte das pessoas com quem convivi é brasileira. Porque um artista é composto por vários estratos e daquilo que o toca e o que me tocou foi o Brasil.

Mas começou a ser artista no Brasil?

Comecei a fazer algumas coisas quando vivia na Venezuela e tinha 16 anos. Aos 18 fui viver para o Rio de Janeiro e entrei na Escola Nacional de Belas-Artes, onde conheci um conjunto de pessoas que originaram a Nova Objectividade Brasileira, em 1967. 

Portanto, fez parte das vanguardas brasileiras?

Sim, mas nunca fiz parte do grupo dos neoconcretos brasileiros. A convivência com a Lygia Clark e o Hélio Oiticica e a minha ambição em encontrar um lugar onde pudesse encaixar aproximaram-me deles. Devo muito aos neoneoconcretos brasileiros, mas eu não fiz parte desse grupo. Eu sou uma andarilha e por isso escrevi um texto onde digo que me vejo como resultado da degustação antropofágica dos artistas brasileiros.

E o que é que escreveu nesse texto?

É um texto de 2009, em que digo: "Eu sou o bolo fecal do banquete antropofágico brasileiro: tornámo-nos Tupis e eu a minha obra [...]. No meu aparato digestivo misturaram-se a cultura da minha terra natal - a Calábria, ali no Sul de Itália - e a da terra Tupi Guarani. Tornei-me Calabra-Tupi-Guarani. Perdi a lógica, a obrigação de ser coerente, livrei-me da catequese. Ganhei liberdade. [...] Não cheguei com os conquistadores no País do Carnaval, mas em um tardio comboio de imigrantes. Logo ao desembarcar no Rio de Janeiro fui tragada pela beleza da paisagem fulgurante [...] Fui comida como um inimigo sacro, digerida e expelida eu mesma, uma antropófaga. Na nova condição de antropófaga fui à busca de comida. O primeiro a ser degustado foi Osvaldo de Andrade e por identificação seu manifesto antropofágico. A seguir foi a vez dos neoconcretos [...] O banquete foi nos anos 60. Degustei a imanência e subjectividade de Lygia Clark, enquanto Hélio Oiticica colocava novas questões ao consumo da brasilidade."

Pode explicar?

As heranças não são imediatas, mas chegam-nos através do tempo. Elas vão-se infiltrando na nossa ampla consciência e, por isso, só muito mais tarde é que comecei a perceber a minha relação com aquele grupo de artistas. Interessou-me o conjunto de ideias que eles debatiam e trabalhavam.

A sua ida para Nova Iorque foi importante na maneira como rompe com o grupo de artistas de quem estava tão próxima?

Houve várias idas para os Estados Unidos. Primeiro fui em 1968 com duas crianças e o meu marido e abandonei totalmente a figuração e só escrevia poesia. E como não tinha espaço, só podia mesmo escrever.

Há alguma coisa que levou da poesia para os seus trabalhos de artes visuais?

Quem me deu a ideia de levar um caderno no bolso foi o Hélio Oiticia. Ele percebeu que em Nova Iorque eu estava muito presa: não tinha espaço, as crianças eram muito pequenas e não conseguia ir ver exposições, tínhamos pouco dinheiro porque vivíamos de uma bolsa de estudo, etc. Nesses anos fui trabalhar ilegalmente para um estúdio de design de tecidos. Eu precisava de dinheiro para pagar o papel onde desenhar, não me podia permitir que fosse o meu marido a pagar o papel e as outras coisas todas. Mas estes anos foram essenciais na minha construção como pessoa. Eu sabia que queria ser artista e que essa vocação teria de ser cumprida, mas antes tinha de me construir como pessoa e, por isso, tive de fazer as coisas que a vida me ia exigindo para ter elementos para me poder construir em liberdade e independência.

Essa primeira estadia em Nova Iorque durou quanto tempo?

Dois anos e meio. Em 1971, regressei ao Brasil: o pouco dinheiro e as imensas crises do meu marido tornaram insuportável a vida em Nova Iorque. Regressei com as crianças e separei-me. Foi um ano de ruptura em que descubro vários materiais, mas voltei "zerada" para o Brasil: não tinha dinheiro, casa ou profissão.

Mas queria ser artista.

Eu nunca deixei de querer ser artista. Desde os cinco anos que esse era o meu desejo e nunca me preocupei em esperar. Eu sabia que iria haver um retorno e as coisas haviam de resultar. Houve períodos em que não pude fazer nada, mas nessas alturas sabia que, no futuro, a arte regressaria. Mesmo a escolha da maternidade foi muito consciente e é tão forte como a escolha da arte. Fui uma óptima mãe, mas sou uma péssima avó. Agora quero a liberdade. Sabe, tudo é válido: eu não mudaria nada.

Nem as coisas que a fizeram sofrer?

Nem essas. Isso é material para o viver, para a criação. Está sempre tudo bem.

Voltou ao Rio com duas crianças. O que fez?

Comecei a experimentar coisas: performances, filmes, papel. Foi nesses anos que construí o vocabulário que uso na minha linguagem.

E esse vocabulário e linguagem formados nos anos de 1970 ainda são hoje válidos?

Na verdade, há elementos comuns não só entre os meus diferentes trabalhos, mas entre o trabalho dos artistas. Porque existem questões comuns que se mantêm: a transcendência, o infinito, o dentro e o fora, o corpo, deus, etc. Há certas preocupações que são as mesmas em todos os artistas. E é isto que me move e são questões que, como numa espiral, estão sempre a ir e vir mesmo que com novas roupagens. O meu trabalho é uma espiral onde se vêem quase sempre as mesmas coisas.

E como é que isso funciona numa exposição?

As minhas exposições são uma espécie de laboratório onde se misturam as coisas todas. O meu trabalho não pode ser visto isoladamente, é preciso juntar tudo. 

É sempre a mesma ideia?

Não, são várias ideias que retornam e se alargam. Por exemplo, a questão da boca é essencial para mim.

A boca enquanto quê?

Enquanto multiplicidade, enquanto início da fala, sítio da linguagem, da alimentação do corpo, fronteira do dentro e do fora, tanta coisa... Na boca está tudo isto. Não me interessa só a questão da linguagem verbal, mas as diferentes maneiras como a boca fala.

A imagem da boca é muito forte: grita-se quando se nasce e suspira-se quando se morre.

É essa a metafísica que está no meu trabalho.

Porque fala no infinito?

Porque me interessa a constante renovação da vida. A vida é infinita, renova-se constantemente, não há cataclismos, mas só renovação e continuidade. A natureza afirma-se através da repetição, não é bem repetição porque a natureza nunca é igual, mas está sempre a afirmar-se. Por isso a escatologia é tão interessante: tudo está a sempre a renovar-se e a transformar-se e resulta em matéria digerida, em merda.

Se o uso da boca é uma constante, o ovo também é um tema que está sempre a retomar.

E o ovo aparece na boca. Eu não inventei o ovo, ele já estava na galinha. Eu invejo a galinha, mas, de facto, não inventei o ovo.

O molde como obra de arte?

O molde ao ser recipiente não só está no limiar entre o dentro e o fora, mas é o que normalmente é descartável na escultura e eu quis sublinhar não só esse limiar, como apoiar-me nas técnicas mais tradicionais da escultura. Incorporar a técnica no meu discurso é uma coisa que me agrada. 

Essa passagem para a questão da técnica não é clara.

Pois, nem todas as metáforas são para decifrar. Não se trata de lógica, mas de uma coisa artística. Interessa-me a questão do molde e da argila e fazer escultura com as mãos como quem mexe na terra. Sabe, terra e o escatológico visceral e transcendente estão muito próximos. A terra tem uma posição permanente na fantasia do ser humano. Qualquer obra com terra é uma comoção. Desde o nosso início que a terra tem a nossa vibração. As minhas grandes instalações de argila não só recorrem a métodos ancestrais, como invocam os primeiros gestos humanos como coisa que todos temos em comum. E isto liga o artesão, o padeiro, o artista, as fezes. A moldagem é um dos processos mais interessantes. E as mãos são o primeiro molde e foi com elas que se fez o mundo: a mão molda, a mão é o primeiro instrumento que o homem usa depois de libertar a boca.

O que é que nas suas exposições mostra o seu processo criativo?

Acho que é uma coisa feminina. A mulher é, por natureza, sustentadora da vida. Não é que o homem não faça parte disso, mas a mulher está mais preparada para suportar a vida. Historicamente, o homem construiu o mundo na superfície e a mulher vinha por baixo, subterrânea. Hoje em dia esta coisa do masculino e do feminino já não faz sentido. O que me interessou quando comecei a trabalhar foi ver a arte como possibilidade de expressar o modo feminino de ver o mundo e a maneira como certas práticas quotidianas são levadas para o contexto artístico. A arte ofereceu um enorme leque de possibilidades ao sentir feminino e isso foi muito importante.

Mostrar o processo foi uma estratégia artística consciente?

Foi uma coisa intuitiva, não foi uma escolha racional. Estava na origem, tem que ver com sensibilidade. Eu carrego as minhas obras com afecções e paixões e é isso que motiva as escolhas.

Isso de encontrar as coisas mais originárias é uma ambição no seu trabalho?

Eu pergunto-me muitas vezes se as coisas mais essenciais e mínimas, as coisas primárias e primeiras, não serão as mais sofisticadas de todas. Quando, por exemplo, vamos ao início do gesto, da acção, do movimento da gota de água que escorre numa superfície, as modificações do papel com o ar e os elementos atmosféricos, encontramos coisas de uma inteligência e sofisticação surpreendentes. Trata-se de ir ao início para se recolocar no mundo. Nunca se consegue totalmente essa nova posição, porque a memória nunca nos deixa atingi-la e o peso da cultura é muito grande. Vai-se ao início, tenta-se acertar o caminho e formar um outro mito para a arte e, claro, para a vida.

Os gestos que dão origem às suas obras são esses gestos primários?

Sim, são uma encenação dos gestos iniciais que criam formas que se bastam a si mesmas e que tendem e ambicionam para a totalidade e o infinito. Claro que se trata de uma ambição inalcançável.

Esse anseio por fechar o ciclo da vida ao repetir o primeiro gesto não cria uma enorme nostalgia?

Não creio. O meu trabalho tem muitos meios, como costumo dizer: é múltiplo, poético e modal. Estas muitas coisas servem-me de artimanha contra o esgotamento que seria estar sempre a fazer a mesma coisa. Quando abandono um suporte material e vou para outro, carrego o meu vocabulário e a minha tentativa continua a ser enfrentar poeticamente o mundo. Com qualquer material que use, estou sempre a mostrar a minha forma poética de estar no mundo.

Mas não tem preferências?

Eu sim, os curadores é que nem sempre gostam, porque ficam sem gavetas onde me arrumar.

Em que gavetas é que a costumam arrumar?

Eu gosto de uma frase que roubei a alguém que já não me lembro do nome: multi-modal-poético. Esta gaveta vai-me muito bem.

Começou a sua carreira muito nova?

Não trabalhei como queria, mas sempre trabalhei. Houve períodos em que estive parada e isso foi bom. É bom ficar quieto e trabalhar de outra maneira sem ser a fazer coisas.

Por que é demorou tanto tempo a ter o reconhecimento internacional que está agora a ter?

No Brasil o meu trabalho sempre foi reconhecido, o problema é que eu fui casada com dois homens artistas. E depois eu não sou brasileira nata e no Brasil nos anos 60-70 isso era complicado.

Por que é que foi difícil ser casada com artistas?

Primeiro há uma coisa subjectiva minha: eu queria estar casada com um herói e, por isso, pus-me a trabalhar para os meus heróis, na retaguarda. É a necessidade antropológica que a mulher tem de querer ter o vencedor. Para mim, isto era importante. Depois da última separação não quis mais companheiros, porque tinha de provar a mim mesma que seria capaz, senão estaria sempre a culpar as circunstâncias. Agora estou casada há 20 anos com o meu trabalho.

Foi difícil ser artista mulher nos anos 1960?

Nem por isso, mas era chato porque eram sempre as mulheres que faziam as actas. A questão feminista nunca me interessou, estava mais concentrada na questão da expressão feminina, da sua interioridade e sensibilidade. Nunca fui radical ou activista, mas tinha consciência da necessidade de espaço.

Na altura era mais fácil ser-se artista homem?

Sem dúvida e ainda o é. Isto não me preocupa, porque as novas mulheres estão a formar novos homens e, portanto, a coisa vai mudar.

Considera-se uma dessas novas mulheres?

Querendo ou não, eu estava historicial, porque o ser humano que periodicamente não ajusta contas com o passado é um alienado. Não se pode avançar sem uma revisão crítica do passado.

Por isso é que está a regressar a Itália?

Há uma galeria em Itália que me está a obrigar a voltar. Fui uma das últimas emigrantes a partir em 1954 de Itália rumo à Venezuela. E este regresso está a ser muito emocionante. Mantive-me sempre longe, mas foi através de Espanha que regressei à Europa. Foram aparecendo coisas e pessoas a quem não pude dizer não. E até porque, como diz o Tarkovski [Andrei, cineasta russo], o sacrifício não é morrer na cruz, mas estar com o outro.

E do que anda à procura?

Estou sempre à procura da minha posição no mundo. Eu sou uma trabalhadora da arte e não estou preocupada em fazer uma grande obra. Só ambiciono encontrar um lugar para estar.

Diz muitas vezes que gosta de andar a vagabundear.

Vagadundear é para mim ler um livro, ir ao cinema. Trata-se de me alimentar e ampliar a minha consciência com a multipoesia dos outros. Só depois consigo voltar ao trabalho com energia. São tempos de distensão muitíssimo importantes. Como escrevi no meu manifesto pessoal: "Continuo me deliciando com a poesia dos outros e sempre com novos banquetes que minha vida peregrina me proporciona. Voraz, absorvo tudo rapidamente, hábitos e culturas alheias. Entre pausas rumino e descanso. Alterno bons pratos com os indigestos: as notícias dos jornais e da TV que, felizmente, se digerem rápidos na velocidade do tempo."

Sente-se a fazer poesia?

A poesia é a base de toda a arte. O acto poético não é composição de palavras, é uma transcrição do sentir em alguma coisa sensível. Trata-se de tornar visível um sentimento, qualquer que seja o meio utilizado.
Dialogue, 2012, Instalação com postal e brinquedo, 18,3X10,3X20,3

Liliana Porter: a língua comum da arte e do humor*

Liliana Porter (n. Argentina, 1941) é uma artista singular. Fez exposições nos mais importantes museus do mundo, faz parte das colecções de arte que são referência e a sua obra é reconhecida pelo modo como através de situações cómicas e humorísticas aborda temas como o trabalho, as relações de poder, a história da arte, entre outros.
Chegou a Lisboa pela primeira vez dois dias antes de inaugurar a sua primeira exposição Portugal na Galeria Baginski e montou uma exposição chamada “Obras recentes” a qual reúne um conjunto de obras feitas entre 2008 e 2012.
Se o humor, o inesperado e a pequena escala são constantes nas obras que apresenta, formalmente as obras são muito distintas: há fotografia, desenho, escultura, instalação, vídeo. O ponto de partida são sempre relações entre objectos, artefactos, imagens, brinquedos que a artista gosta de colocar ao mesmo nível. Um conjunto de coisas tão heterogéneo que cria confusões que a artista pensa poderem libertar o olhar e que correspondem a um esforço de encontrar sentido para as mais vastas tarefas humanas.
Falou com o Ípsilon sobre o seu trabalho, sobre a sua herança argentina e sobre o modo como gostaria de fazer arte como o Borges escreveu. Uma ambição que não só reforça a ligação ao seu pais natal, mas é uma boa imagem para descrever o modo como gosta que olhem para as suas obras.

Como pensou esta exposição para Lisboa?
Como é a primeira vez que exponho em Portugal, decidi não fazer obras grandes que fossem difíceis de montar e transportar e que tocassem os temas a que estou sempre regressar na minha obra, como por exemplo a questão da casa ou o trabalho. A casa presta-se a muitas leituras e metáforas: pode ser o lugar onde se está protegido, onde não se precisa de mais nada, etc., e gosto de usar temas de tenham esta riqueza e possibilidades.
Como surge a ironia?
As minhas obras por vezes dão vontade de rir, mas é um humor que não é exclusivamente gracioso, mas ambiciona tocar em temas essênciais. Por exemplo, naquela obra [Diálogo, 2012] em que uma pequena ovelha está a conversar com o postal que reproduz uma pintura renascentista, a questão é sobre a possibilidade de diálogo e uma forma de falar da relação entre tempos distintos: o da ovelha e da pintura. Interessa-me muito a maneira como coisas diferentes e contrárias se conseguem relacionar não só ao nível dos objectos, mas as pessoas ou a tristeza e a alegria e sinto que este jogo nos ensina qualquer coisa que eu não sei bem dizer o que é.
E não há questões políticas e sobre o poder?
Também, há sempre questões politicas. A relação entre personagens tão diferentes como as que surgem nas minhas obras pode traduzir-se numa ideia de esperança de diálogo livre e de entendimento comum.
E porque é que os seus personagens estão quase sempre a fazer coisas aparentemente inalcançáveis?
Essas obras pertencem a uma série chamada “Trabalhos Forçados”: são pessoas face a tarefas que os superam. É uma metáfora para tentar entender o que é que estamos a fazer neste mundo, porque viver é sempre uma tarefa que parece superior às nossas possibilidades. E depois o humor surge da consciência que somos completamente ignorantes e nos estamos sempre a equivocar.
Não se trata da impotência do homem face à imensidão das coisas que tem de fazer?
Não só de impotência, mas também de esperança. Eu sou optimista e penso que não é importante saber se chegamos ou não à solução final. E o erro e falta de compreensão é importante porque é o que nos faz continuar a procurar, se tudo estivesse em ordem parávamos e ficava tudo estático. E o desafio é encontrar a ordem e a harmonia no meio da confusão. E ganhar significar ser feliz, mas ser feliz não é só estar contente, mas é um chegar a termos com o que nos acontece, a um bom acordo com o que nos rodeia.
Isso não é uma valorização excessiva do trabalho?
O trabalho é uma imagem para falar acerca do sentido da vida e serve para tomar consciência do difícil das nossas tarefas. Não estar louco significa o esforço para encontrar uma ordem na vida através da execução das nossas tarefas, por isso dedicar-se a um trabalho faz parte desse esforço de sanidade.
Essa dimensão do fazer também é algo que valoriza no seu trabalho artístico?
Não, nas minhas obras essa dimensão é quase inexistente. No fundo, as minhas coisas são quase todas encontradas. O fazer é mental e está ao serviço de uma ideia que essa sim dá origem às minhas obras.
E o uso dos objectos como é que surgiu?
Há sempre uma ideia a que eles se juntam e uso-os porque não têm classe social, todos têm o mesmo valor e status independentemente do preço que custam. E esta simultaneidade do diverso é uma coisa que me fascina. Vou recolhendo objectos muito diferentes e sem saber bem porquê e depois há um momento em que o seu uso se torna evidente. E gosto da escala pequena dos meus objectos porque obriga o espectador a ter de se aproximar das obras, a curvar-se.
E o diálogo com a história da arte como é que aconteceu?
As obras de arte são objectos da realidade como outros quaisquer e fazem parte do vocabulário das experiências que fazemos com o mundo. Na minha obra “Magritte” (2008) eu coloquei a reprodução de uma obra de Magritte em que um homem está de pé e em baixo a legenda diz “homem sentado” e eu, como se não tivesse percebido a obra, sentei a pintura numa cadeira. É como se estivesse a corrigir o Magritte. E na separação que este artista faz entre a palavra e o objecto tomei consciência que se as coisas não tivessem nome nós lhes daríamos muito mais atenção e as veríamos melhor: as coisas sem nome são mais misteriosas e exigem muito mais atenção. É como conta o Garcia Marques nos “Cem anos de solidão”: o mundo era tão recente que era preciso assinalar as coisas com o dedo. E o que o Magritte fez foi não tornar evidente o estranho da realidade.
E os outros artistas que convoca no seu trabalho?
Uso-os porque não é preciso estar sempre a fazer tudo desde o princípio. Se alguém já pensou certas coisas posso usar a suas obras e partir daí. E gosto de criar confusões com as obras dos outros.
Mas ao criar essas confusões pretende libertar o nosso olhar?
O nosso não sei, mas pelo menos o meu. São pequenas descobertas que faço com o mundo. O que me interessa são as ideias e o que mais gostaria de ter feito na vida era fazer artes visuais como o Borges escrevia.
Como o Borges?
É o meu universo. Ele diz as coisas que eu gostava de ter dito.
Essa relação faz parte da aprendizagem artística que fez na argentina?
Eu nasci na Argentina e vivi em Buenos Aires até aos 22 anos e foi lá que estudei arte e foi nesse contexto que aprendi o meu modo de pensar artístico.
Modo de pensar artístico?
Sim, em arte pensamos de uma maneira oblíqua: há uma lógica habitual que tem de se destruir.
Foi por isso que escolheu ir estudar arte?
Na verdade eu não escolhi, a minha mãe e a minha tia é que acharam que uma menina como eu devia ir estudar arte. Por sorte a coisa correu muito bem, mas foi só quando deixei a Argentina e fui para o México que um professor veio ter comigo e me disse: és uma artista e vais fazer uma exposição. Até ai nunca tinha tido nenhuma pressão exterior.
E quando foi para Nova Iorque?
Eu cheguei a Nova Iorque em 1964 e queria fazer uma grande viagem entre os EUA e a Europa para ver museus. Mas nunca mais sai de Nova Iorque. O ano em que cheguei foi intenso e logo no primeiro dia fui a uma festa e conheci duas raparigas que estavam à procura de casa e fui viver com elas. E fiquei por lá a fazer gravura. Vendi imensas gravuras. Um ano depois casei-me e arranjei logo uma galeria. Pode dizer-se que me correu tudo muito bem. Nos EUA aprende-se a ter imensa liberdade e há espaço para toda a gente. Quando vou ao Buenos Aires toda a gente olha para mim, em Nova Iorque quase ninguém sabe quem sou. Por isso foi tão importante ter ficado.
Não continuou a estudar?
Não, continuei a fazer a minha obra e uns tempos mais tarde fui dar aulas.
Nunca pensou voltar à Argentina?
Tenho um contacto muito próximo com o pais e o meio cultural, mas voltar a viver não. E quando lá vou sinto-me em casa, mas em Nova Iorque também. A diferença é que em Buenos Aires todos os ritos me prendem muito: se não se põe a camisa certa toda a gente olha e perco a liberdade e anonimato que tanto gosto em Nova Iorque.
Nos anos sessenta não sentiu qualquer descriminação por ser uma mulher do sul?
Se eu fosse norte-americana a vida ter-me-ia corrido melhor. E é verdade que quando se olha para o meu currículo nas exposições colectivas em que participo aparece sempre: artista latino-americana. E não há forma de fugir disto.
A sua herança argentina está muito presente no seu trabalho?
Eu acho que sim. No vídeo “Matinee” que mostrei na Old School da Susana Pomba é clara essa herança. E depois continuo a pensar em espanhol e tudo o que aprendi quando era criança continua a expressar-se na obra. Não é um elemento racional que trabalho na obra, mas sinto que sou muito Argentina e é dali que recebo as minha as experiências. Nós os latinos não somos literais como os norte-americanos e este modo de dizer oblíquo está muito presente no que faço.
E o seu riso? Sempre foi tão presente ou foi conquistado ao longo do tempo?
As minhas primeiras obras eram muito secas. Eu era muito séria, minimal, conceptual. Mas para sobreviver o humor foi muito importante, uma aprendizagem que recebi do meu pai. E depois a estrutura de uma piada é muito semelhante ao modo como se pensa uma obra de arte. O que é que nos faz rir? Começa a contar-se uma coisa normal e de repetente vem uma coisa que não tem nada que ver com a história que se estava a contar e essa intromissão faz rir. Com a arte a situação é a mesma: o que dá origem à arte é uma lógica ilógica, uma lógica diferente, oblíqua, mas que está mais próxima da realidade.
Quando pensamos no sue trabalho pode pensar-se em coisas como ilógico, confusão, mas a obra faz sempre sentido.
Sim, claro. As obras criam um sentido própria e são claras. É impossível que as coisas não signifiquem. E a simplicidade e facilidade das minhas obras são meramente aparentes. Num conto o Borges diz “o prazer estético é a eminência de uma revelação”, quer dizer não é a revelação: a arte é acerca da revelação, por isso tem de ser simples.

*texto publicado no suplemento Ípsilon do jornal Público